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segunda-feira, 16 de agosto de 2010

EFEITOS CIVIS E PROCESSUAIS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA CRIMINAL - REFLEXÕES SOBRE A LEI Nº 11.719/2008

EFEITOS CIVIS E PROCESSUAIS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA CRIMINAL - REFLEXÕES SOBRE A LEI Nº 11.719/2008 - Alexandre Freitas Camara

(Publicada no Juris Síntese nº 79 - SET/OUT de 2009)

Por Alexandre Freitas Camara
Desembargador no Tribunal de Justica do Rio de Janeiro.
Professor de Direito Processual Civil da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual, do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual e da International Association of Procedural Law.


SUMÁRIO: Introdução; I - Sistemas de responsabilização civil pela prática de ilícitos penais; II - O sistema brasileiro anterior à Lei nº 11.719/2008; III - O sistema instituído pela Lei nº 11.719/2008; IV - Críticas ao novo sistema; IV.1 O problema da correlação entre demanda e sentença; IV.2 O problema dos limites subjetivos da coisa julgada; IV.3 A incompatibilidade entre a nova regra e o sistema acusatório; Conclusão.

INTRODUÇÃO

Recentemente, foi reformado o Código de Processo Penal. Das alterações legislativas operadas nessa sede têm tratado, com grande proficiência, os maiores especialistas em direito processual penal brasileiro. Há, porém, um ponto em que a reforma do processo penal toca no processo civil. Refiro-me, evidentemente, à inclusão, entre os elementos que devem estar contidos na sentença penal condenatória, da determinação do valor mínimo da indenização devida pelos danos decorrentes da prática do crime.

O objetivo desta exposição é analisar a nova redação do art. 387, IV, do Código de Processo Penal, estabelecida pela Lei nº 11.719/2008, a partir de uma ótica processual civil. Isto não impede, porém, que algumas considerações sejam feitas à luz do direito processual penal. De toda sorte, o que se busca é saber se, e em que medida, esta inovação pode trazer consequências para o processo civil brasileiro.

I - SISTEMAS DE RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL PELA PRÁTICA DE ILÍCITOS PENAIS

Para início desta breve exposição, impende tecer algumas considerações acerca do modo como o direito contemporâneo tem tratado da relação entre o crime e a responsabilidade civil pelos danos daí decorrentes.

São conhecidos, no direito moderno, dois sistemas de fixação da responsabilidade civil pelos danos decorrentes da prática de ilícitos penais:

a) Sistema da separação: proíbe que no processo penal se postule reparação civil: é o modelo adotado no Direito anglo-saxônico e holandês. É o sistema que o Direito brasileiro adotou no período imediatamente anterior à reforma do CPP aqui examinada.

b) Sistema da adesão: permite que no processo penal se postule reparação civil. Em alguns casos, a postulação é feita pela vítima ou seus sucessores, em outros, pelo Ministério Público, atuando como substituto processual. É o adotado, por exemplo, na Itália. Pode ser de “adesão obrigatória” ou de “adesão facultativa”.

O exame do tema que constitui o objeto dessa exposição deverá levar a se verificar se a Lei nº 11.719/2008 terá operado ou não alguma modificação quanto a este ponto no Direito brasileiro.
Para isso, impende conhecer o sistema adotado antes de tal lei, o que se faz com brevíssima análise dos regramentos anteriores à referida lei, desde o ordenamento dos tempos do Império até os dias imediatamente anteriores a tal diploma legislativo.

II - O SISTEMA BRASILEIRO ANTERIOR À LEI Nº 11.719/2008

Inicialmente, se adotou, no Brasil, o sistema da adesão (primeiro, adesão facultativa, ao tempo do Código Criminal do Império, de 1830, já que havia casos em que a vítima poderia postular a reparação do dano no Juízo Cível; depois, adesão obrigatória, com a fixação do valor da indenização na sentença, a partir do Código de Processo Criminal do Império, de 1832). A partir da Lei nº 261, de 1841, passou-se a adotar o sistema da separação.

O art. 63 do CPP estabelece que “transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no Juízo Cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros”. E isto se dá porque, na forma do art. 91, I, do Código Penal é efeito da condenação “tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime”. Daí porque, como consequência disso tudo, o art. 475-N, II, do CPC estabelece que a sentença penal condenatória transitada em julgado é título executivo no plano civil.

A rigor, porém, a condenação penal jamais foi verdadeiro título executivo civil. Isto se diz pelo fato de que a condenação penal torna a obrigação de indenizar certa, mas não a torna (ou, pelo menos, não a tornava) líquida. Daí então porque sempre se afirmou que a sentença penal condenatória era título capaz de tornar adequada a postulação de liquidação de sentença para, só depois, permitir a instauração de execução 1.

III - O SISTEMA INSTITUÍDO PELA LEI Nº 11.719/2008

A reforma do CPP estabeleceu que a sentença conterá a indicação do valor mínimo da indenização devida ao ofendido (art. 387, IV). Por sua vez, o novo parágrafo único do art. 63 do CPP estabelece que uma vez “transitada em julgado a sentença condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do inciso IV do caput do art. 387 deste Código sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido”.

Diga-se, em primeiro lugar, que este novo regime não impede o ajuizamento de demanda civil de reparação de danos. Afinal, permanece em vigor o art. 64 do CPP, segundo o qual, “sem prejuízo do disposto no artigo anterior, a ação para ressarcimento do dano poderá ser proposta no Juízo Cível, contra o autor do crime e, se for o caso, contra o responsável civil”. Disso se pode, então, extrair que o Direito brasileiro teria passado, por força da Lei nº 11.719/2008, do regime da separação para o da adesão facultativa.

Sem que se faça, ainda, qualquer análise crítica dos novos dispositivos, limitado esse estudo, por ora, a um exame da literalidade do texto, caberá ao Juízo Criminal, na sentença condenatória, fixar um valor mínimo de indenização. Uma vez transitada em julgado a sentença penal, caso a vítima se dê por satisfeita com o valor indicado naquele provimento, promoverá desde logo a execução; caso lhe pareça insuficiente aquele valor, deverá primeiro postular a liquidação da sentença.
Importa destacar que, tanto no caso de se demandar desde logo a execução, como no caso de se postular primeiro a liquidação da obrigação, a legitimidade passiva para o processo civil será, apenas, daquele que tenha sido condenado pela prática do crime (ou de seu espólio ou de seus sucessores, caso já tenha falecido o condenado no momento da instauração do processo civil).

IV - CRÍTICAS AO NOVO SISTEMA

IV.1 O problema da correlação entre demanda e sentença

O primeiro problema que, a meu ver, deve ser enfrentado é o da correlação entre a demanda e a sentença. Como ensina a mais autorizada doutrina sobre o tema, toda violação desse princípio implica, na verdade, um desrespeito ao princípio do contraditório 2.

A necessidade de respeito ao princípio da correlação nada mais é do que a imperiosa garantia que devem ter as partes de que poderão prever, com absoluta exatidão, todos os possíveis resultados do processo. Têm elas, pois, o direito de participar do processo de modo a influenciar o juízo na formação do seu resultado. Admitir decisões que não sejam perfeitamente congruentes com a demanda, ressalvados casos raríssimos, implica permitir a formação de um resultado do processo que a parte não pôde prever e, por isso, não teve como influir em sua formação. Isso viola a garantia do contraditório e, pois, é absolutamente inadmissível - salvo, repita-se, casos excepcionalíssimos, todos de natureza não penal.

Desse modo, para que se admita que o juiz penal, na sentença, fixe o valor da indenização, é absolutamente essencial que isso tenha sido pedido, sob pena de se ter uma sentença incongruente. Surge, então, o problema de saber quem fará tal pedido, e como isso se dará.

Não me parece possível, em primeiro lugar, que ao Ministério Público, titular da ação penal, seja possível atribuir-se tal legitimidade, pois a mesma teria inegável natureza extraordinária, e dependeria, para existir, de expressa previsão legal, que não existe 3.

A solução, então, seria reconhecer a possibilidade de o próprio ofendido, ou seus sucessores, postularem a indenização perante o Juízo Criminal. Assim, estar-se-ia a reconhecer a competência do Juízo Criminal para o processo civil que tivesse por objeto a reparação do dano causado pelo mesmo fato que, no processo penal, se afirma ser crime.

Este entendimento, porém, esbarra no disposto no art. 125, § 1º, da Constituição da República. Afinal, estabelecer a competência ratione materiæ dos Juízos Estaduais é tema de organização judiciária, o qual é reservado à legislação estadual de iniciativa do Tribunal de Justiça. Assim, o entendimento aqui apresentado acaba por esbarrar em uma inconstitucionalidade formal, já que a lei federal não pode tratar da matéria.

Veja-se, por exemplo, a diferença entre o vigente texto do CPP e o da lei que trata da violência doméstica e familiar contra a mulher. O art. 14 desta lei estabeleceu que os Estados poderiam criar Juizados com competência cível e criminal para as causas que versassem sobre a matéria regida por aquele diploma. Coube, porém, a lei estadual de iniciativa do Tribunal de Justiça a efetiva previsão de um órgão com competência cível e criminal.

A atribuição por lei federal a um Juízo Criminal de competência cível é formalmente inconstitucional e, portanto, não se pode admitir a interpretação até aqui apresentada.

A solução desse problema seria considerar-se que a fixação do valor da indenização pelo Juízo Criminal independeria de demanda civil, o que criaria outro problema, como visto, de ordem constitucional, já que a inclusão da determinação do valor mínimo da indenização no objeto do processo penal independentemente de pedido geraria uma ilegítima violação do princípio da correlação entre demanda e sentença e, pois, da garantia constitucional do contraditório.

O sistema estabelecido pela Lei nº 11.719/2008, portanto, padece de vício de inconstitucionalidade, não podendo ser aplicado.

IV.2 O problema dos limites subjetivos da coisa julgada

Admitida, apenas como hipótese de trabalho, a possibilidade de que o Juízo Criminal, independentemente de demanda proposta pelo ofendido ou seus sucessores, fixe o valor mínimo da indenização, ter-se-á outro problema a examinar: o da eficácia dessa fixação quando considerados os limites subjetivos da coisa julgada.

Inicio por registrar um ponto que, a meu ver, será de grande importância. É que a doutrina, tradicionalmente, afirma que a condenação penal equivale, no plano civil, a uma sentença declaratória da existência da obrigação de indenizar, a qual, dispensado por lei o momento condenatório, teria eficácia de título executivo 4. Assim, porém, não me parece. Sentença declaratória é a que contém o acertamento da existência ou inexistência de uma relação jurídica (ou, nos casos admitidos, de um fato). Ocorre que a condenação penal não contém (ou, pelo menos, não continha, antes da Lei nº 11.719/2008) o acertamento da existência da obrigação de indenizar, limitando-se a conter juízos de valor sobre aspectos penais 5.

Tornar certa a obrigação de indenizar, como afirma o art. 91, I, do CP, não é declarar sua existência. E isso porque, em matéria de títulos executivos, quando se fala em certeza da obrigação, não se alude à certeza quanto à sua existência. Sobre o tema, cite-se a conhecida lição de Dinamarco 6:

Afastada a imprópria vinculação do título ao acertamento do crédito, não pode sobrar espaço para a falsa ideia de que se exija a certeza quanto à existência do crédito como requisito para executar. Nem o mais idôneo de todos os títulos executivos, que é a sentença civil condenatória passada em julgado, seria capaz de atestar a existência do crédito no momento da execução: o lapso que medeia entre sua prolação possibilita a extinção do crédito pelo próprio adimplemento, por prescrição, novação, etc. A equivocada definição contida no art. 1.533 do Código Civil [de 1916, sem correspondente exato no Código Civil de 2002] é incapaz de remover essa realidade.

Na busca do verdadeiro significado da certeza como requisito substancial do título executivo, tenha como apoio a consciência da razão de sua exigência pela lei processual. É para poder fixar em cada caso os limites do sacrifício a ser imposto ao patrimônio do executado que a lei dita a indispensabilidade dos elementos que concorram para a perfeita individuação e dimensionamento do direito a executar.

Assim é que, quando se fala em direito certo, pensa-se num direito cujos elementos sejam perfeitamente conhecidos; em outras palavras, será certo um direito, se definidos os seus sujeitos (ativo e passivo) e a natureza da relação jurídica e do seu objeto. Não haveria como nem porquê exigir a segura existência do direito como requisito para executar. Como ficariam os embargos à execução [ou a impugnação]?

A mesma ideia é afirmada em moderníssima obra doutrinária 7:

Quanto aos requisitos do direito consagrado no título, vai, antes de tudo, afirmado que “certeza” não significa incontestabilidade ou certeza absoluta, mas apenas relativa, no sentido de que o direito deve emergir nos seus limites, seja objetivos seja subjetivos, do próprio título.
Vê-se, pois, que a condenação penal não contém (ou, pelo menos, não continha) a declaração da existência da obrigação de indenizar mas, tão somente, produzia o efeito de tornar certa tal obrigação, no sentido de que a partir daquela sentença seria possível afirmar-se quem são os sujeitos da obrigação exequenda (o ofensor e o ofendido ou seus sucessores), assim como a natureza e o objeto da obrigação (sendo obrigação de indenizar, o objeto só pode ser indenizar em dinheiro).

Deste modo, é possível considerar que, ao menos antes da reforma, o efeito executivo civil da sentença penal não guardava qualquer relação com a autoridade de coisa julgada material alcançada por aquele pronunciamento jurisdicional. E isto porque, como sabido, a coisa julgada é imutabilidade do conteúdo da sentença, não guardando qualquer relação com seus efeitos 8.

Com a reforma operada pela Lei nº 11.719/2008, porém, a sentença penal condenatória passa a conter a declaração do valor mínimo da indenização a ser paga. Daí se tem de extrair, também, e inevitavelmente, que a sentença penal contém a própria declaração da existência da obrigação do ofensor de reparar o dano suportado pelo ofendido.

Consequência de tudo isso é que, com a redação vigente da lei processual penal, os limites objetivos da coisa julgada penal passam a abarcar, também, a declaração da existência da obrigação de indenizar e do valor mínimo a ser pago. Afinal, tais declarações estarão contidas na sentença, sendo alcançadas pela autoridade de coisa julgada.

Constatado o fato de que com a reforma do CPP a declaração da existência da obrigação de indenizar e do valor mínimo da indenização passam a ser alcançados pela autoridade de coisa julgada material, impende verificar os limites subjetivos da imutabilidade dessas declarações.

Deve-se considerar, com apoio na mais autorizada doutrina, que no processo penal a coisa julgada se opera apenas inter partes 9. E não poderia mesmo ser diferente. Afinal, admitir que a coisa julgada alcance quem não participou do processo (nem foi substituído por alguém que tenha promovido a defesa de seu interesse) acarretaria uma inconstitucional violação ao princípio do contraditório.

É de se considerar, então, que se o ofendido não participa do processo em que é fixado o valor mínimo da indenização (e já se viu anteriormente a razão pela qual não pode participar), não haverá coisa julgada entre ofensor e ofendido.

O que acaba de ser dito nada mais é do que a aplicação, ao caso, de algo que é absolutamente tranquilo em matéria de limites subjetivos da coisa julgada. Basta ver o seguinte exemplo: em um processo no qual são partes A e B, disputa-se a propriedade de certo bem. Proferida a sentença, declara-se que a propriedade é de A. Isso não impede, porém, que haja outros processos entre A e C, ou entre B e C, em que se dispute a propriedade do mesmo bem. Veja-se que C não pode invocar a coisa julgada nem mesmo perante B, que saiu vencido naquele primeiro processo, e isso porque - conforme regra universalmente reconhecida - a coisa julgada não alcança terceiros, nem para os prejudicar, nem para os beneficiar (res inter alios iudicata aliis nec nocet nec prodest).
Aplicados esses princípios ao caso em exame, verifica-se que não haverá coisa julgada nem a prejudicar, nem a beneficiar o ofendido, que não participa do processo penal. Deste modo, nada impediria que no processo civil se discutisse até mesmo a existência de dano a reparar.

É absolutamente desnecessário dizer aqui que nem todo ilícito penal gera danos indenizáveis. Assim, seria perfeitamente possível que, em um processo civil instaurado por demanda do ofendido pela prática de crime, ainda que tenha havido a afirmação na sentença penal de que existe obrigação de indenizar, e até mesmo no caso de se ter fixado naquela sentença o valor mínimo a ser pago a título de indenização, se viesse a afirmar a inexistência de qualquer dano e, portanto, a inexistência da obrigação de indenizar. Isto, perdoe-se a insistência, não seria uma ofensa à coisa julgada por não estar a hipótese obstada pelos limites subjetivos da coisa julgada que se tiver formado.

Daí se extrai, pois, que não há qualquer utilidade em se fixar, na sentença penal condenatória, o valor mínimo da indenização, pois o Juízo Cível não estará vinculado a tal fixação, podendo estabelecer valor menor ou, até mesmo, declarar a inexistência do dever de indenizar por ausência de dano indenizável. A regra trazida pela Lei nº 11.719/2008 que aqui se analisa, portanto, é absolutamente inútil e, deste modo, despida de qualquer efetividade. Por tal motivo, há de ser vista como letra morta, dela se fazendo tabula rasa, já que sua observância em nada contribuirá para a tutela jurisdicional de quem quer que seja.

Desse modo, deve-se considerar que tal dispositivo, por inútil que seja, se revela inconstitucional, já que despido de razoabilidade, sendo certo que qualquer norma jurídica que viole o princípio da razoabilidade ofende, diretamente, o disposto no art. 5º, LIV, da Constituição da República.

IV.3 A incompatibilidade entre a nova regra e o sistema acusatório

Chama-se sistema acusatório o “conjunto de normas e princípios fundamentais, ordenadamente dispostos e orientados a partir do principal princípio, tal seja, aquele do qual herda o nome: acusatório” 10. No Direito contemporâneo, o sistema penal acusatório tem as seguintes características fundamentais 11:

a) clara distinção entre as atividades de acusar e julgar;
b) a iniciativa probatória deve ser das partes;
c) mantém-se o juiz como um terceiro imparcial, alheio a labor de investigação e passivo no que se refere à coleta da prova, tanto de imputação como de descargo;
d) tratamento igualitário das partes (igualdade de oportunidades no processo);
e) procedimento é, em regra, oral (ou predominantemente);
f) plena publicidade de todo o procedimento (ou de sua maior parte);
g) contraditório e possibilidade de resistência (defesa);
h) ausência de uma tarifa probatória, sustentando-se a sentença pelo livre convencimento motivado do órgão jurisdicional;
i) instituição, atendendo a critérios de segurança jurídica (e social) da coisa julgada;
j) possibilidade de impugnar as decisões e o duplo grau de jurisdição.

Não tenho qualquer dúvida em afirmar que a regra estabelecida pela Lei nº 11.719/2008, na nova redação do art. 387, IV, do CPP, é contrária ao primeiro daqueles postulados componentes do sistema acusatório. É que, ao permitir que o juiz criminal fixe o valor mínimo da indenização sem que haja demanda com este objeto, a lei acaba por fazer com que as atividades de acusar e julgar incidam sobre a mesma pessoa. Afinal, aplicada a norma, seria do juiz a atividade de acusar o réu de ter causado dano indenizável ao ofendido.

Ocorre que a adoção do sistema acusatório é absolutamente fundamental para a conformidade constitucional das normas processuais penais. Afinal, como tem reconhecido o Supremo Tribunal Federal, no ordenamento jurídico brasileiro vigora o sistema acusatório 12.

Registro, neste ponto, que o sistema acusatório é estabelecido, modernamente, sobre a assim chamada “presunção de inocência”. Sobre o ponto, em obra que já se tornou clássica, pode-se ler que presunção de inocência e “devido processo legal”, na verdade, são conceitos que se complementam, traduzindo a concepção básica de que o reconhecimento da culpabilidade não exige apenas a existência de um processo, mas sobretudo de um processo “justo”, no qual o confronto entre o poder punitivo estatal e o direito à liberdade do imputado seja feito em ternos de equilíbrio. 13

É preciso ter claro, então, que esta garantia (de que ninguém será tratado como culpado senão depois do trânsito em julgado da sentença penal condenatória), fundamental na construção de um “escudo protetor contra o poder arbitrário, e que está incluído em todas as garantias que fazem parte do processo penal” 14. Inserido em tal contexto, o juiz penal tem de ser visto como um juiz de garantia, um “garantidor da eficácia do sistema de direitos e garantias fundamentais do acusado no processo penal” 15.

Disto se extrai que o juiz penal tem uma função diferente da do juiz civil. Isto porque ao juiz civil não se atribui a função de proteger o demandado das imputações do demandante. Admitir, então, que o juiz penal fixe valor de indenização acaba por contrariar essa função do juiz penal garantidor, o que reforça o argumento da existência de conflito entre esta regra agora inserida no CPP e o moderno processo penal, constitucionalmente legítimo, que se tem tentado construir no Direito brasileiro.

A incompatibilidade entre a norma veiculada pela redação dada ao art. 387, IV, do CPP pela Lei nº 11.719/2008 é, pois, contrária ao sistema acusatório. Só não haveria essa incompatibilidade se coubesse ao ofendido ou ao Ministério Público demandar pela reparação do dano o que, como visto anteriormente, não decorre da norma aqui examinada. Assim, é a mesma inconstitucional, não podendo ser aplicada.

CONCLUSÃO

De todo o exposto, a única conclusão possível é pela inconstitucionalidade da norma aqui examinada. E se é inconstitucional tal norma, então é preciso concluir que nada mudou, e que se continua a adotar, no Brasil, o sistema da total separação entre o Juízo Penal e o Juízo Cível. Não quer isto dizer, evidentemente, que a sentença penal não possa produzir (como produz) efeitos civis. Não se admite, porém, ao menos diante do direito vigente, que o juiz penal, ao proferir a sentença condenatória, fixe qualquer valor a título de indenização, seja mínimo ou não.

Em síntese: tudo como dantes no quartel de Abrantes.

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